Eu achava que não veria uma guerra na Europa, mas ela está aí, machucando a humanidade e levantando sérias dúvidas sobre o futuro, o nosso mesmo, amanhã. Agora tento, como muitos, entender que razões há nesse conflito. Sempre é mais fácil quando se é jornalista, historiador ou cientista político, mas nunca fui de correr de uma boa pergunta.
Desde o início do conflito, antevendo algumas e observando outras reações à guerra sendo apresentadas mundo afora, me questionei se o governo russo – para simplificar, Vladimir Putin – não tinha encomendado a seus analistas todo um estudo prévio sobre as consequências de uma invasão militar da Ucrânia. É claro que este estudo foi feito e com profundidade. Russos são famosos por seus excelentes jogadores de xadrez, não fariam uma jogada tão arriscada sem antes calcularem muito.
E calcularam. Lê-se aqui e ali que fizeram reservas financeiras, se prepararam para sanções duras do Ocidente e fizeram questão de anunciar aos quatro ventos sua “parceria sem limites” com a China.
E então volto à questão inicial: qual é a razão desta guerra?
À parte as questões que estão postas à mesa – impedir a possível entrada da Ucrânia na OTAN, o reconhecimento da Crimeia como território russo, a independência da região do Donbass, recursos minerais, terras férteis... -, ainda que possam ser questões estrategicamente caras à Rússia, não parecem argumentos com força suficiente para compensar todos os riscos que se presumem calculados para tamanha ousadia.
E mesmo que, olhando agora, pareça que a Rússia subestimou a intensidade das reações que enfrentaria na Ucrânia e do resto do mundo, começo a desconfiar que existe algo a mais aí. E o fato de eu não ter lido ou ouvido analistas comentarem sobre o que eu imagino ser o pano de fundo para a guerra também tem me intrigado: ou estou mal informado, ou estou errado. Mas estou pagando pra ver.
Hoje o mundo não se divide mais entre capitalismo e socialismo, houve um vitorioso evidente nesse embate, com todas as conhecidas imperfeições tão criticadas no regime de livre mercado e livre iniciativa. Mesmo a China, expoente do que ainda se pode chamar de nação comunista, hoje está mais para um capitalismo de estado.
Se algo parece ainda dividir o mundo, isso diz respeito ao grau de liberdade que se tem em cada país, com democracias avançadas em um extremo e ditaduras persistentes (ou em formação) no outro. E acho que é justamente sobre isso a guerra na Ucrânia.
Por mais ignorante que eu seja no assunto, me parece claro que a Ucrânia é um país em franco processo de abertura à democracia e à liberdade, movimento intensificado após a revolução que, em 2014, tirou do poder um fantoche do regime de Putin para colocar presidentes mais comprometidos em tornar a Ucrânia uma nação mais parecida com as democracias modernas da Europa do que com o regime que hoje vigora na Rússia, uma ditadura que foi sendo construída com um persistente processo de corrosão do estado democrático de direito e de cerceamento às liberdades individuais.
Por outras vias, o caminho que o povo ucraniano sinaliza querer trilhar já foi percorrido por outras ex-repúblicas soviéticas, como Estônia, Lituânia e Letônia, com melhoria da qualidade de vida de suas populações. Ainda que não seja fácil construir uma democracia plena, em que liberdade e igualdade não sejam apenas boas intenções como as que enfeitam o preâmbulo da nossa Constituição Federal, certamente é um esforço que vale a pena. Quem experimenta a liberdade não quer abrir mão dela.
E me parece que este movimento é chave para entender a invasão da Ucrânia pela Rússia.
A Rússia e a China devem ter chegado à conclusão de que, superada a discussão entre capitalismo e socialismo, o mundo deve se agrupar entre nações democráticas (ainda que o conceito possa ser elástico) e autocracias (ditaduras, oligarquias e assemelhados). Também devem ter percebido que a democracia é uma força que se irradia, que contagia populações e que, sim, derruba regimes autoritários. Para a Rússia, onde antes havia uma Cortina de Ferro, há um grupo de nações democráticas com gente abanando as mãos para a população russa e falando “olha como eu sou mais feliz agora!”. Uma dor de cabeça diária para quem governa com mão-de-ferro.
Rússia e China, os dois “parceiros sem limites”, em suas análises, devem ter concluído também que o momento atual é bom para esticar a corda: o mundo ainda está meio zonzo por conta da pandemia; parece haver campo fértil para políticos populistas mundo afora, o que é má notícia para a democracia; e a expansão das mídias sociais criou ambiente excelente para se moldar a verdade que se quer vender, para se manipular a vontade de populações e para se interferir em eleições em qualquer lugar do planeta (a quem duvida, reveja a discussão sobre a interferência externa nas eleições norte-americanas de 2016).
Eu junto isso tudo e acredito que Rússia e China apostam que o futuro pode ser melhor para seus governantes – não necessariamente para seus povos – em um mundo em que a democracia não seja valor dominante. Esse mundo seria feito de ditaduras, oligarquias, democracias doentes (populistas, centralizadas e corruptas) e regimes do tipo.
E a dupla aposta que pode moldar este futuro agora.
A quem acredita em teorias da conspiração e teme a tal “Nova Ordem Mundial” (e as bobagens de todo tipo que costumam acompanhar o termo), é melhor se preocupar mesmo é com a nova desordem mundial que Rússia e China acreditam poder criar e conduzir. É na desordem permanente que regimes autoritários florescem. Democracia é império da lei, depende de ordem, de racionalidade, de ciência. Ditaduras só dependem da vontade de quem manda.
Essa guerra não é contra a Ucrânia, é contra a democracia. Que o mundo possa superar mais este conflito e emergir como um lugar melhor, de verdade, pra se viver.
Fábio Maurício Selhorst.
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