São dez horas de uma manhã de março, e eu sinto vontade de gritar - soltar vários AAAAAAAA bem longos e altos, vomitando pra fora a angústia daquela espera que não faz parte da minha rotina rígida. Estou aguardando por uma entrevista com a psicóloga, e a perspectiva de encará-la e ter de dizer coisas a ela me enche de dor e angústia, insuportáveis a ponto de me sufocar.
Fora da sala de espera, meu filho mais novo, Aron, solta longos EEEEEEEEE enquanto corre pelo pátio da agência, tendo o pai e o irmão em seu encalço. Tudo aqui é novo pra ele também; mas o menino grita, e eu não. Mas, antes de ser por uma conveniência social, devo lembrar que fui condicionada desde sempre a mascarar a minha neurodivergência sob a face de uma pessoa trancada em si mesma – com explosões pontuais quando chego ao meu limite. Aron não mascara a dele: grita, ri descontroladamente, faz movimentos de flapping (1) com as mãos, anda nas pontas dos pés; executa seus stims (2) com grande desenvoltura, enquanto prendo, dentro do meu coração, a vontade de me jogar no chão e gritar, o mais puro suco do meltdown (3) preso como um leão na jaula.
Aron, quatro anos, é autista. Eu, trinta e sete, sou autista.
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Tratei o diagnóstico do meu filho com a objetividade costumeira: se ele é autista, então vamos buscar o que é necessário, dentro do que seu espectro exige. Não tive o que chamam de período de luto ou negação.
Jamais poderia cogitar a hipótese de ver o Aron como um problema, e fico triste quando ouço as pessoas dizendo, em voz baixa: “ele tem problema”. Ele não é um problema, e tampouco tem um. Tem, na verdade, um oceano dentro de si; mas só consegue compartilhá-lo em gotas. Assim como eu. Este texto é uma gota. O Aron falar “tchau” ou olhar nos olhos do interlocutor, é uma gota. Não desperdiçamos nossas ações e nem nossas palavras. A maioria dos problemas relacionados ao autismo vem de pessoas neurotípicas com dificuldade em compreender nossa condição.
É verdade que, embora não sejamos problemas, às vezes o nosso comportamento nos coloca dentro de algumas situações sui generis (mas aí, já é problema dos outros, e não nosso, *risos*). Aron se recusa a comer comidas com textura úmida e molenga, não gosta de beijos e detesta ambientes apertados e lotados de gente (o que, geralmente, ele costuma resolver na base do grito). Eu, tenho ojeriza a lugares lotados e barulhentos, e não consigo manter o foco em conversações longas e prosaicas (a pessoa falando da tonga da mironga do cabuletê e eu observando o meio de suas sobrancelhas, fingindo interesse enquanto penso na apocoloquintose do divino Claudio (4) ou algum outro hiperfoco extremamente específico. Gritar e rir não é uma opção, infelizmente).
Quando está bravo, Aron canta ia ia ô e aperta o queixo com força no objeto de sua raiva – e isso ocorre, claro, quando algo sai de sua zona de planejamento. Eu, por minha vez, sinto desconforto ao fazer caminhos diferentes para ir ao trabalho, e a visita a amigos e familiares precisa ser cuidadosamente planejada dias antes do evento. Aron tem fixação em objetos que rodam, e eu, em livros e cinema. Nada pode sair das estreitas delimitações às quais me imponho, dentro de meu espectro. Várias vezes, por causa disso fui chamada de “chata”, “sem educação”, “rude”, “improdutiva” – por isso, e também por desviar o olhar e não cumprimentar pessoas. Por ser caudalosa em minha escrita, mas concisa em minhas conversas. Não sei como definir isso, mas simplesmente não suporto toques em meu corpo, e sustentar o olhar das pessoas é uma tortura. A perspectiva de participar de algum evento social requer um preparo semelhante ao de um show no Maracanã: o que vou dizer? Como vou agir? É muito difícil atravessar um salão e cumprimentar montanhas de gente. Mas não se trata de antipatia; é apenas algo sensorialmente desconfortável.
Então, entendo quando o Aron tem explosões de choro em público. Não é um garoto agressivo; é carinhoso, amoroso, feliz. Se ele chora, entendo a sua necessidade. Mas também compreendo que preciso treiná-lo para este mundo – e quero fazer isso dentro de uma carga imensa de afeto, passando o mais longe possível dos rompantes de impaciência e imediatismo.
Não fui uma criança compreendida em minhas então denominadas “esquisitices”; mas não posso culpar os outros por ter nascido em uma época em que o autismo ainda era uma sombra nos campos de interesse de meu entorno. Apenas fui a menina tímida, retraída, mas extremamente focada em coisas muito específicas: meu primeiro livro foi um dicionário, e amava levá-lo a todos os lugares, conhecer palavras, inventar jogos com ele, ou simplesmente tê-lo apertado contra o peito. O dicionário foi, por muito tempo, o meu objeto regulador, meu stim toy (5).
A partir do diagnóstico do Aron, pude rever muitas coisas em minha própria história, compreender mais acerca de mim mesma. A chegada do Aron demoliu os muros que construí (e que construíram) à minha volta, e então pude me aceitar mais, e compreender mais as pessoas ao meu redor que partilham de nossa realidade. Ressignifiquei o passado, o presente e o futuro. Antes, enxergava o autismo “de fora” e pensava que não saberia lidar com ele; hoje, isso extravasa de mim, e dentro do meu coração sei que podemos, e que tudo é possível. Sei que o Aron vai pode ter um grande futuro. Ele, seus colegas maravilhosos da APAE (onde ele estuda; instituição maravilhosa, um epicentro de amor), os desbravadores hiperfocados do Planeta Terra, são uma nova geração de pessoas que, sendo diferentes, fazem a diferença ao evocar ideais de empatia, compreensão, carinho, persistência e afeto sincero – ainda que cuidadosamente calculado.
A partir disso, não me entendo mais como “esquisita”, “problemática” ou “excêntrica”. Sou autista – como meu filho caçula. O diagnóstico foi libertador, como se eu tirasse uma roupa muito apertada que me incomodara por anos. E é uma felicidade juntar meu oceano ao do Aron, poder me misturar entre ele e seus colegas (crianças e adultos) - mesmo que ainda não nos entendam, que nos julguem, que nos segreguem. Temos um longo caminho, e vamos fazê-lo de mãos dadas.
Fique por dentro*
A Conscientização do Autismo tem como objetivo esclarecer e propagar informações para a população sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Segundo a Organização Mundial da Saúde, essa condição afeta uma em cada 100 crianças no mundo. Mas a incidência do autismo ainda gera divergência e discussões entre as entidades que estudam a fundo o tema. Um recente levantamento do Center of Diseases Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos, mostra aumento na prevalência: uma em 36 crianças possui esse diagnóstico.
O TEA consiste em um distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por desenvolvimento atípico, alterações comportamentais, dificuldades na interação social, padrões de comportamentos repetitivos, podendo apresentar um repertório restrito de interesses e atividades e principalmente déficits na comunicação.
Segundo a coordenadora do Departamento de Foniatria da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF), Dra. Mônica Elisabeth Simons Guerra, o atraso da fala é uma das principais características que atingem as pessoas com Transtorno do Espectro Autista.
"As manifestações do autismo variam de pessoa para pessoa, mas os atrasos na fala e na comunicação social são comuns, podendo ser indicativos também de outros problemas, como distúrbios da audição, o que acaba levando à procura do médico otorrinolaringologista. Este é geralmente um dos primeiros sinais de alerta para o TEA, percebidos pela família", comenta.
Após a pandemia da Covid-19, a atenção dos pais a esses comportamentos é fundamental, pois a forma como as crianças interagem com outras pessoas mudou drasticamente devido às escolas fechadas e às restrições de distanciamento social, causando menos oportunidades de integração e aprendizagem, impactando no desenvolvimento da fala, principalmente naquelas que já estavam apresentando sinais de atraso.
De acordo com a Dra. Mônica, as crianças com atrasos de fala e linguagem também costumam ser vistas no segundo ano ou no início do terceiro ano de vida e elas parecem estar se desenvolvendo normalmente, "mas não falam ou pronunciam poucas palavras, não combinam palavras para formar frases, parece que não ouvem ou que não entendem as ordens ou, ainda, falam muito enrolado e os estranhos não conseguem compreender o que está sendo dito".
A ABORL-CCF reforça a importância da busca por um diagnóstico adequado para determinar a causa do atraso na fala e garantir que a criança receba o tratamento mais apropriado, o mais precocemente possível, identificando e avaliando, por exemplo, situações que comprometem o desenvolvimento de linguagem, como uma anomalia estrutural nos órgãos do sistema auditivo que pode impedir a audição, síndromes genéticas ou transtornos de desenvolvimento, como o TEA e o transtorno do desenvolvimento da linguagem.
Sinais de alerta
Segundo a médica foniatra, membro da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial e especialista da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia Pediátrica (ABOPe), Dra. Trissia Vassoler, alguns dos indícios apresentados por pessoas com TEA são olhar vago, não responder quando chamado pelo nome, não balbuciar ou emitir som a partir do terceiro mês, ausência de sorriso social e postura antecipatória para serem segurados quando um adulto se aproxima. A lista de sinais ainda inclui não falar nenhuma palavra com 12-14 meses nem mostrar interesse em se comunicar, não compartilhar interesses, falta de expressão de atenção conjunta, vocalizações incomuns e movimentos repetitivos com o corpo ou objetos, rigidez de comportamento, fixação em movimentos ou interesses e falta da brincadeira lúdica.
Diagnósticos precisos de crianças com atrasos no desenvolvimento da comunicação podem levar a uma intervenção precoce de especialistas para designar terapias adequadas e, por isso, é essencial a atenção aos sinais que indicam a necessidade de uma avaliação mais ampla em crianças com atrasos de linguagem.
"O médico otorrinolaringologista pode contribuir com o diagnóstico e tratamento desta população, auxiliando em uma melhor qualidade de vida e impactando positivamente na sua interação social, por ser uma das primeiras especialidades a ser procurada para o diagnóstico diferencial com à surdez. A população tem que estar atenta para não banalizar o atraso e deve buscar a intervenção precoce. Mesmo que o diagnóstico ainda não esteja completamente fechado, a criança já deve iniciar terapia", finaliza Trissia.
Flapping (1) é um movimento repetitivo das mãos classificado como estereotipia de alguns autistas; trata-se de um gesto regulador em situações em que são expostos a muitos estímulos – assim como girar em torno de si mesmo, pulos e gritos, movimentos pendulares e hiperfoco em coisas ou ações específicas (objetos que giram, etc). Stim (2) ou stimming são movimentos autoestimulatórios. Meltdown (3) é como são chamados os momentos de crise impossíveis de serem controlados: ocorrem em situações estressantes e de sobrecarga sensorial; caracteriza-se por comportamentos extremos e explosivos – ao contrário do shutdown, no qual há ”desligamento” e prostração diante de alta carga de estímulos. Apocoloquintose do Divino Claudio (4): a transformação de Claudio em abóbora é uma obra do filósofo cordovês Sêneca. Trata-se de uma sátira a respeito das falhas de caráter do Imperador romano Claudio, tratando com zombaria a sua suposta descida ao Hades após a morte. Stim toy (5):Objeto usado como regulador de emoções e estímulos; pode ser objetos que giram (ventiladores, fidget spinners, piões, etc.), com proximidade afetiva (cobertor, ursinho de pelúcia) ou que exigem capacidades especificas de organização e elaboração (blocos, poppits, lápis, etc). As imagens e suas respectivas legendas foram retiradas do Instagram de Jôze Paiva (@olhardeautista), também autista.
Fique por dentro* - Orientações da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF) e da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia Pediátrica (ABOPe) - por Cidiana Pellegrin.
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